Está prevista para esta semana a apresentação do relatório do Grupo de Trabalho Sobre a Reforma Administrativa, que deverá acontecer inicialmente numa das primeiras reuniões do Colégio de Líderes da Câmara dos Deputados, o que pode ocorrer já na terça-feira, 5.
Algumas coisas a serem consideradas são, de início, a forma como foi criado o GT, a sua composição, o prazo para apresentar o relatório com as propostas de proposições legislativas (emenda à Constituição, leis complementar e ordinária, por exemplo).
Outras considerações que podemos fazer são às contribuições recebidas de fora do parlamento, mesmo antes da instalação do GT, e as audiências públicas realizadas, dando uma aparência de trabalho democrático.
Em relação à criação do GT, quero destacar o momento, a forma e o pretexto apresentado. O anúncio de criação do Grupo de Trabalho, feito pelo presidente da Câmara dos Deputados, deputado Hugo Motta (Republicanos/BP), se deu em 21 de maio deste ano, momento que podemos considerar ainda o início do mandato de Motta como presidente da Casa. A criação do GT serviu, também, para que o deputado/presidente comentasse com os mais próximos querer a reforma administrativa como um legado seu, haja vista que outros presidentes da Câmara tiveram para chamar de suas as reformas trabalhista e previdenciária (Rodrigo Maia, ambas) e tributária (Arthur Lira), por exemplo. Quanto à forma de criação, o GT foi anunciado sem uma discussão ampla e necessária com o conjunto das forças que compõem a Câmara, principalmente as do campo democrático e popular. Já a composição, é amplamente majoritária de parlamentares conservadores, ainda que tivesse sido ampliada posteriormente a presença parlamentar do campo progressista (mais de 60% de conservadores na última contagem). Pode ser argumentada a proporção atual da composição político-ideológica da Casa, o que poderia garantir o debate democrático. Mas, não é o que veremos adiante.
O momento em que se deu a criação do GT, não por acaso, ocorreu durante a tramitação do PL nº 1.466/2025, que substituiu a Medida Provisória número 1.286/2024, editada em 31 de dezembro, justamente para que os reajustes salariais negociados entre o Executivo e diversas entidades sindicais pudessem ter validade a partir de 1º de janeiro de 2025, mas com o pagamento condicionado a aprovação da Lei Orçamentária Anual de 2025. Orçamento cuja votação deveria ter ocorrido e encaminhada para sanção presidencial até 22 de dezembro de 2024, como determina a Constituição Federal (art. 35, §2º, III), o que, como sabemos, não ocorreu (isso é um bom assunto para um outro artigo).
Voltando ao conteúdo do PL nº 1.466/2025, que é o que tem a ver com a criação do GT e a com a “reforma administrativa”, o projeto de lei em relação aos trabalhadores do serviço público federal, assim como a MP que o antecedeu, tratava, entre outras coisas, da criação de duas carreiras transversais, do reajuste salarial de servidores e empregados públicos do Poder Executivo federal, além da reestruturação de cargos efetivos, planos de cargos e carreiras, da padronização e unificação de regras de incorporação de gratificações de desempenho aos proventos das aposentadorias e pensões, além de alterar regras do Sistema de Desenvolvimento na Carreira – SIDEC.
Coincidência (?)
Uma observação em relação ao encaminhamento do projeto de lei foi o regime de urgência aprovado, não permitindo a tramitação pelas comissões temáticas correspondentes, sendo o relatório apresentado para votação diretamente em plenário, sem os debates necessários. O que nos leva às observações quanto ao mérito.
No texto apresentado pelo relator do PL, deputado Luiz Gastão (PSD/CE) chamou atenção, sem nos surpreender, a manutenção da criação das carreiras transversais, modelo que se encaixa no que defendem os proponentes da reforma. Outro ponto que se destacou no relatório foi a retirada de parte considerada importante no texto original proposto pelo governo, que tratava de desenvolvimento de servidores nas carreiras. Em seu texto, o relator diz que “em relação ao tema do desenvolvimento do servidor na carreira, especificamente naquilo que se relaciona ao SIDEC, entendemos que esta oportunidade não é a mais adequada para tal discussão. A nosso ver, o tema em questão deve ser tratado no âmbito da Reforma Administrativa”. Essa declaração, que consta do relatório aprovado pelo plenário da Câmara, já deixava claro um dos temas importantes para os proponentes da reforma administrativa, o desenvolvimento de servidores em suas carreiras. A coincidência, se é que existiu, ficou por conta da apresentação do GT sobre a reforma administrativa ser exatamente no mesmo dia da votação do PL nº 1.466/2025 no plenário da Câmara.
Perguntado sobre o resultado da aprovação do PL e o corte promovido pelo relator, o coordenador do GT sobre a reforma administrativa, deputado Pedro Paulo (PSD/RJ), disse que foram retirados do PL os pontos referentes a desenvolvimento nas carreiras, além de todas as garantias que poderiam gerar direito futuro. Pontos importantes dentro da proposta de reestruturação dos quadros de pessoal das três esferas de governo pelos proponentes da reforma.
Algumas observações que nos levam a pensar sobre o Grupo de Trabalho e seus objetivos
Um “grupo” para inglês ver (ou brasileiro)
Segundo alguns membros do próprio GT, questões importantes no funcionamento de um grupo de trabalho como a socialização das informações, propostas e debates entre os membros do grupo não ocorreram. Os parlamentares que não comungam da cartilha neoliberal tiveram acesso às informações da mesma forma que o público em geral, seja através de declarações públicas de seu coordenador, ou através de publicações em nome do próprio grupo.
Audiências públicas
Foram realizadas oficialmente oito audiências públicas, sendo ouvidos representantes do chamado setor produtivo nacional, de entidades representativas de carreiras jurídicas, especialistas acadêmicos, de entidades representativas de servidores públicos, representantes de carreiras transversais e estratégicas, além de representantes de governos das esferas do Poder Executivo. Chama atenção a diferença de tempo para explanações durante as audiências públicas reclamada pelas entidades representativas de servidores públicos, que alegaram ter menos tempo do que outros setores convidados para apresentarem suas visões e sugestões sobre a proposta de reforma administrativa.
Ao final das atividades do grupo, fica a expectativa sobre o que pode ter sido incorporado ao relatório do que foi visto e ouvido dos diversos segmentos convidados às audiências. Pelo menos nas declarações públicas do coordenador do GT não encontramos nada diferente do dito no momento de apresentação e de instalação do grupo.
Contribuições externas
Tão logo instalado o GT sobre a reforma administrativa, foram apresentadas contribuições externas. Contribuições que já estavam prontas para apresentação desde o processo de articulação para a instalação do GT. Eram documentos elaborados por entidades com quem o deputado federal Zé Trovão (PL/SC) conversava sobre o tema, se fazendo porta-voz junto ao presidente da Câmara, buscando convencê-lo da instalação do grupo, do qual o deputado Zé Trovão é formalmente o autor do requerimento de criação e membro desde a instalação.
As contribuições recebidas compuseram o “Caderno de Estudos Para a Reforma Administrativa”, com prefácio assinado pelo deputado Zé Trovão. O documento é composto de uma “Proposta de Texto-Base Para Discussão”, acompanhada de “pareceres técnicos” assinados pela Central Brasileira do Setor de Serviços – CEBRASSE, pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo – Fecomercio/SP e pela República.org. Lembrando que essas mesmas instituições foram apoiadoras e contribuintes na elaboração da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, conhecida como “Reforma Administrativa” do governo Bolsonaro, que formalmente segue tramitando na Câmara dos Deputados, restando apenas a votação em plenário daquela Casa, mas sem perspectiva de seguir sua tramitação, em razão do forte desgaste político-eleitoral desde o período pré-eleitoral de 2022.
Outros “contribuintes”
Além das instituições signatárias dos “pareceres técnicos” que compõem o “Caderno de Estudos Para a Reforma Administrativa”, foram ouvidos previamente os representantes do chamado Terceiro Setor, como o Movimento Brasil Competitivo, Movimento Pessoas à Frente, além do Instituto República. Cabe o destaque a contribuição, em audiência pública, da Confederação Nacional das Instituições Financeiras – CNF, representada por seu presidente, o ex-deputado e ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, atualmente filiado ao PSD.
O conteúdo da proposta
No documento intitulado “Caderno de Estudos Para a Reforma Administrativa”, a “Proposta de Texto-Base Para Discussão” é na verdade uma sugestão de alteração do artigo 37 da Constituição Federal em vários pontos, onde seriam tratados de “RACIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA REMUNERATÓRIA DE PESSOAL”;
“SUPERSALÁRIOS”,
“RACIONALIZAÇÃO E UNIFORMIZAÇÃO, EM ÂMBITO NACIONAL, DAS NORMAS PARA CONTRATAÇÕES TEMPORÁRIAS” (constitucionalizando o que hoje é tratado por norma infraconstitucional),
“ORGANIZAÇÃO DE CARGOS (públicos) PELA SISTEMÁTICA DE POSTOS OU POSIÇÃO” (seleção e contratação de servidores em qualquer nível da carreira e não mais exclusivamente pela base de entrada),
PERDA DE CARGO POR SERVIDOR ESTÁVEL POR INSUFICIÊNCIA DE DESEMPENHO (regulamentando o que consta na Constituição desde 1998 – Emenda Constitucional nº 18/98, alterando forma e critérios de avaliação de desempenho),
APRIMORAMENTO DOS MECANISMOS DE PROMOÇÃO DE PESSOAL E RACIONALIZAÇÃO DE CARREIRAS DO SETOR PÚBLICO (alterar mecanismos e regras para concursos, novas políticas de carreiras, como carreiras mais amplas no tempo de evolução e transversalidade),
ESTÍMULO À PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS POR MEIO DE PLATAFORMAS DIGITAIS (vinculando federal, estaduais e municipais).
Não é difícil depreender que os “pareceres técnicos” que compõem o documento seguem na mesma político-ideológica neoliberal. O documento como um todo, “Proposta de Texto-Base Para Discussão”, mais os “pareceres técnicos”, seguem a orientações do Banco Mundial dirigidas ao Brasil, divulgada em 26 de junho último, que, entre outros temas, se manifesta sobre a “necessidade de uma “Reforma Administrativa”, na seguinte forma:
Banco Mundial – Reforma administrativa com regras para servidores: a proposta contempla redução dos salários iniciais em 20%, em média; a adoção de prazos mais longos para progressões na carreira; mudança nas políticas de contratação para redução de privilégios no setor público; introdução de práticas de gestão de recursos humanos mais orientadas aos resultados; ajuste dos salários dos atuais servidores apenas pela inflação e redução do número de carreiras.
O que podemos encontrar?
Em suas premissas apresentadas formalmente em documento, o GT, entre outros pontos, propõe:
- Uma reforma completa precisa considerar não apenas uma reforma de recursos humanos. É preciso considerar a estratégia, estrutura organizacional, processos / uso de tecnologia, entre outros aspectos.
- Vamos buscar as boas práticas de gestão onde elas estiverem. Municípios, Estados, Governo Federal assim como experiências internacionais.
- A reforma deve ser 3 X 3. Para os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciários) e para os três entes da federação (União, Estados e Municípios).
Diz também o documento que a reforma irá tratar, para servidores, de:
Sistema de carreiras
- Ex.: Redução Nº de Carreiras e Transversalidade
- Facilitar a mobilidade entre os órgãos.
- Fim de carreiras ultrapassadas (ex. datilógrafo)
- Alongamento de Níveis. Existem carreiras com apenas 3 níveis, com baixa diferenciação.
Gestão de Desempenho e Desenvolvimento
- Avaliação e Progressão por Mérito (Metas / Avaliação)
- Curva Forçada;
- Estrutura Piramidal de Carreira
Programa de Bonificação por Desempenho. Concessão de “14º” e “15º” e não se incorpora ao vencimento. Ex. PLP 409/14.
Programa de Lideranças
- Identificação de Cargos Estratégicos
- Programa específico de bonificação para altos gestores
- Programa de capacitação e gestão
- Programa de sucessão
- Preenchimento de Cargos em Comissão
Por fim, O Grupo de Trabalho Sobre a Reforma Administrativa, tanto pelo conteúdo de seus materiais, quanto pelas declarações de sua coordenação, deixa clara a intenção de retomar a implantação de um modelo neoliberal de Estado a partir da desconstrução da administração pública por dentro, desestruturando a força de trabalho necessária para o atendimento e a gradativa melhoria das condições de prestação de um serviço público necessário ao atendimento das necessidades da população usuária.
O assunto é vasto e ainda há muito o que dizer, discutir e fazer. A única coisa que não nos é permitida é a inércia.