:: Quando escrever é também exercer o poder público
Em 27 de julho de 2025, foi realizado o concurso público para a Polícia Federal, cuja banca foi o Centro Brasileiro de Pesquisas – CEBRASPE. Na prova de redação, também conhecida como prova discursiva, para o cargo de Escrivão, o candidato deveria escrever um texto dissertativo sobre o tema A LINGUAGEM NOS ATOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. No texto, o futuro policial federal teria de abordar, necessariamente, a relação entre a redação oficial e os princípios da impessoalidade e da legalidade da administração pública, bem como os atributos da clareza e da precisão na redação oficial e a importância de seu atendimento para o respeito às garantias do investigado.
O padrão de resposta é um documento publicado pela banca após a aplicação da prova. Nele consta como a banca vai avaliar numericamente (nota) a abordagem do tema e o que ela espera que o candidato, minimamente, tenha escrito. O padrão de resposta não é um limitador, mas um norte. O candidato pode extrapolá-lo, sem fugir do tema, mas não deve ficar aquém do esperado. Segundo o padrão, há diversas abordagens a serem dadas ao tema e é essencial que se mencionasse que documentos oficiais devem ser redigidos de modo a garantir, entre outros aspectos, a aplicação dos princípios da impessoalidade e da legalidade: a comunicação oficial, por se dar entre o serviço público e o público ou uma instituição, deve ser objetiva, impessoal, padronizada, clara, de modo a contribuir para que as ações do Estado sejam imparciais perante terceiros, não beneficiando nem prejudicando pessoas específicas, e que haja clareza quanto ao exercício do poder estatal dentro dos limites da lei, principalmente no âmbito da atuação policial, a qual pode resultar em cerceamento de direitos. O CEBRASPE também cosiderou essencial abordar que a clareza e a precisão na redação oficial contribuem para o respeito às garantias do investigado ao permitir, por exemplo, que ele tenha acesso às acusações que lhe sejam imputadas, de modo a poder defender-se de maneira apropriada.
A redação oficial, frequentemente tratada como um conjunto de normas técnicas ou meramente formais, cumpre, na verdade, um papel central na administração pública brasileira. A linguagem utilizada em relatórios, comunicações e despachos pode impactar diretamente os direitos fundamentais do cidadão. Assim, é mais do que um instrumento de registro ou de comunicação interna: ela representa a concretização dos princípios constitucionais que regem o serviço público. O CEBRASPE sinalizou a importância do domínio técnico da norma culta e a compreensão ética e funcional de que a linguagem é meio de expressão do próprio Estado. Isso torna o tema especialmente relevante à função de escrivão, cuja atuação impacta diretamente a lisura e a legalidade das ações policiais e judiciais.
A redação oficial e os princípios constitucionais
De acordo com o artigo 37 da Constituição Federal de 1988, a administração pública deve obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. No contexto da redação oficial, dois desses princípios se destacam: a legalidade — que vincula toda ação do agente público à lei — e a impessoalidade — que exige neutralidade e universalidade nos atos do Estado. A linguagem administrativa é uma linguagem institucional, portanto, deve servir ao interesse público e não a interesses pessoais ou emocionais.
A linguagem, assim, torna-se uma garantia de conformidade constitucional. Quando a administração pública redige um documento, comunica, mas também formaliza uma ação do Estado. Isso implica que o texto produzido deve se submeter à forma padronizada, clara, precisa e impessoal, como previsto no Manual de Redação da Presidência da República. A impessoalidade se concretiza por meio da padronização dos modos de tratamento, da ausência de marcas subjetivas e da utilização de estruturas sintáticas objetivas. A legalidade é reforçada pelo uso de vocabulário técnico-jurídico adequado, que traduza fielmente os dispositivos legais que fundamentam a ação administrativa.
Clareza e precisão como garantias processuais
Ao tratar do princípio da clareza e da precisão, a redação oficial se alinha ao devido processo legal, um dos pilares dos direitos fundamentais. Conforme destaca Irandé Antunes, “clareza não é apenas qualidade estética do texto, mas fator de justiça comunicativa”. No caso específico da Polícia Federal, a clareza textual garante que o investigado compreenda, sem ambiguidades ou lacunas, os atos de que é alvo — uma condição essencial para o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa.
Marcos Bagno e Evanildo Bechara enfatizam que a norma-padrão representa a escolha por uma linguagem estável e socialmente reconhecida, indispensável em situações de natureza jurídica e administrativa. Ao abordarem o funcionamento da norma-padrão e sua aplicação no serviço público, mostram que não se trata de elitismo linguístico, mas de adequação comunicativa: a linguagem técnica precisa evitar ruídos, ambiguidades e inferências que comprometam a exatidão do ato administrativo. Por exemplo, um relatório policial mal redigido pode prejudicar o direito de defesa e/ou comprometer um processo investigativo.
Nesse sentido, o papel do escrivão é decisivo: ele atua na formalização textual dos atos da autoridade policial, o que exige não apenas domínio gramatical, mas consciência da função política e jurídica da linguagem. Escrever bem é pensar com clareza e respeitar o outro com precisão. E, nesse contexto, o “outro” é o cidadão — especialmente aquele sob investigação, cuja dignidade deve ser respeitada em todas as etapas do processo.
A linguagem como mediação do poder estatal
O texto não é um mero amontoado de frases, mas um tecido de sentidos articulados que revela intencionalidades. Na administração pública, essas intencionalidades devem ser transparentes, legítimas e pautadas pela racionalidade legal. No caso da Polícia Federal, a linguagem escrita formaliza o exercício do poder de polícia, que, embora necessário ao Estado Democrático de Direito, deve ser limitado pela legalidade e pela garantia dos direitos fundamentais.
Portanto, a linguagem não é um adereço da burocracia: é o que confere existência jurídica e institucional a um ato administrativo. Como bem sintetiza Fernando Moura, “a linguagem do Estado é o próprio Estado em funcionamento”.
O tema proposto pelo CEBRASPE foi um convite à reflexão: escrever, no serviço público, é também agir juridicamente. A linguagem oficial, quando usada com clareza, impessoalidade e precisão, torna-se instrumento de justiça e cidadania. No contexto da Polícia Federal, essa verdade adquire contornos ainda mais delicados, pois o poder de investigação, embora legítimo, exige contenção, técnica e legalidade.
Ao formar funcionários públicos conscientes do papel ético e jurídico da linguagem, a administração pública fortalece seus processos internos e o Estado Democrático de Direito. A prova discursiva de 2025 exigiu do candidato mais do que conhecimento gramatical: pediu compreensão crítica do papel da linguagem como ferramenta de justiça, cidadania e democracia. Para o cargo de escrivão da Polícia Federal, isso é ainda mais evidente: sua atuação textual tem impactos diretos sobre a legalidade dos atos policiais, sobre os direitos dos investigados e sobre a imagem institucional do Estado.
Cabe, portanto, a todos os servidores públicos dominar os aspectos formais da redação oficial, compreender que escrever, no serviço público, é exercer poder — e responsabilidade.
Referências bibliográficas
- ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
- BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
- BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
- KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça e TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência textual. ed. São Paulo: Contexto, 2018.
- MOURA, Fernando. Nas linhas e entrelinhas: dissertação e interpretação de textos, redação oficial e parlamentar. Brasília: Vestcon, 2010.
- PESTANA, Fernando. A gramática para concursos públicos. ed. São Paulo: Grupo Gen, Editora Metodo, 2023.
- Manual de Redação da Presidência da República. ed. Portaria nº 1.369, de 27/12/2018. Brasília: Presidência da República.